A escravidão foi – e infelizmente, ainda é – um fenômeno mundial e atemporal. No mundo islâmico medieval e moderno, esta instituição diferenciava-se de qualquer outro tipo de escravidão pois suas nuances, sua forma, e sua não racialidade exclusiva como nas Américas, permitia a existência de uma mobilidade social impensável em qualquer outro regime escravocrata na hisória da humanidade: no mundo islâmico, escravos não apenas ascendiam socialemente, mas tornavam-se reis de fato, com o poder em suas mãos, acima de seus mestres, sem que isso representasse qualquer anomalia social.

Rico cidadão etíope do Império Otomano e seu escravo branco, 1560.

     Há muitos casos célebres de escravos assumindo posições de proeminência e chefia, dando origem a dinastias e impérios– escravos das mais diversas origens, desde eslavos até turcos e africanos –. Na Índia, os escravizados africanos (em sua grande maioria, etíopes) formaram um “clã” político conhecido como os Habshis ou Sidis, que durante um certo período de tempo, desempenhou papéis centrais nas políticas dos reinos muçulmanos do subcontinente indiano. Todavia, aqui neste artigo iremos focar num segmento em específico de escravos: os que assumiram a mais alta posição que podiam nas terras para onde foram traficados, e todos negros, oriundos diretamente da África.

Abu al-Misk Kafur

Ele foi uma personalidade extremamente influente no Egito do século X, durante o reinado da Dinastia turca dos Ikhshídidas. Originalmente um escravo e eunuco negro, as fontes não são unânimes sobre sua origem, que pontuam ao menos dois lugares diferentes para sua origem: Etiópia ou Sudão (en tão conhecida como Núbia). Foi comprado pelo fundador da dinastia Ikhshídida, Muhammad ibn Tughj, por volta do ano de 923 EC, tornando-se um leal servo de seu amo, motivo pelo qual sempre foi recompensado; uma dessas recompensas foram sucessivas promoções militares após provar-se valoroso comandante em batalha, chegando a liderar campanhas no Levante e tornando-se influente junto a seu senhor, tornando-se guardião dos filhos do emir. Com a morte de Ibn Tughj em 946 tornou o governante de facto do Egito, atuando como regente. Enquanto governante, foi um homem pio na religião e patrono das artes. Conseguiu manter o Egito sob domínio Ikhshídida em frente às ameaças da época, representadas pelos Hamdânidas, Cármatas, Fatímidas (que tomaram o controle do Egito pouco após sua morte) e núbios. Veio a falecer em 946 e foi sepultado próximo aos emires Ikhshídidas em Jerusalém, numa localidade próxima ao Monte do Templo. [1]

Dinar de ouro de Abu al-Misk Kafur cunhado na Palestina em 966.

Malik Kafur

Também conhecido como Taj al-Din Izz al-Dawla (alcunha que significa ‘’Coroa da religião, Vitória do Reino’’), foi um general-escravo do Sultanato de Delhi (outra dinastia de escravos), à época governado por Alauddin Khalji.  Pouco se sabe de sua vida antes de sua captura por Sultan Alauddin, exceto sua acestralidade hindu; após a Invasão do Gujarate em 1299 por Alauddin, foi feito prisioneiro e converteu-se ao Islã. Destacando-se, tornou-se, rapidamente, conselheiro e comandante militar do homem que o capturara chegando, em 1306, a tornar-se barbeg, uma espécie de mistura de "mordomo do paço" com general. No mesmo ano, foi enviado contra uma invasão mongol pelo Canato Chagatai na região do Punjabe. No ano seguinte, Alauddin escolheu Kafur para invadir o reino hindu de Devagiri, fato que fez com que Kafur fosse elevado acima de todos os outros escravos de Alauddin (mesmo aqueles que já eram comandantes). Kafur chegou a receber o título de vice-rei e, quando Alauddin tornou-se seriamente doente em 1315, tornou-se seu regente, inclusive convencendo o Sultão de executar seus opositores políticos, instigando paranoia nos ouvidos do sultão moribundo. Nos últimos dias de Alauddin, não permitia que ninguém visse o sultão, o que o fazia o governante de facto Império. Quando Alauddin morreu em 4 de Janeiro de 1316, Kafur tomou várias medidas para manter o poder, que acabaram por minar o poder da família do falecido Sultão, o que motivou os guarda-costas de Alauddin a matá-lo em fevereiro do mesmo ano. [2]

“O último ato de Malik Kafur”, gravura europeia representando o assassinato de Malik Kafur, retirado do livro “Hutchinson’s Story of the Nations.”

Malik Ambar

Nascido na Etiópia, presumivelmente no ano de 1548, Malik Ambar foi vendido como escravo em Bagdá, indo para Meca e depois para Bagdá novamente, onde foi levado por seu dono, Mir Qasim al-Baghdadi, para a região do Decão, na Índia; lá, foi comprado por um ex-escravo e então ministro do Sultanato de Ahmadnagar de nome Chengiz Khan. Após a morte de seu mestre, tornou-se um homem livre e casou-se, chegando a servir o Sultão de Bijapur e adquirindo o título de "Malik". Logo, tornou-se regente da Dinastia de Nizamshahi de Ahmadnagar. Como regente, fez uma remarcada administração e tornou-se extremamente influente e respeitado, principalmente devido ao que seus súditos consideravam ser um “gênio militar”, ao que fez reformas militares que aumentaram consideravelmente o tamanho do Exército e da Cavalaria do Sultanato. Fundou uma nova capital para o reino, batizada de Khadki, que foi mais tarde renomeada Aurangabad pelo Príncipe Aurangzeb, além de construir grandes obras públicas e de infraestrutura. Foi um pioneiro nas guerras de guerrilhas na região do Decão, principalmente em seus vários conflitos com os Mogóis, sendo também conhecido por derrotar os bijapuris liderador por outro Vizir de origem etíope, Ikhlas Khan. Após sua morte em 1626, seu filho Fateh Khan assumiu como regente, mas o Sultanato caiu para o Império Mogol apenas 10 anos após a morte de Ambar. Suas derrotas no fim da vida minaram seu poder e prestígio acumulado mais cedo. [3]

Retrato de Malik Ambar feito por um artista da corte Mogol em 1620.

Malik Raihan Habshi - Ikhlas Khan

Pouco se sabe sobre sua infância e origem, mas sabe-se que era membro dos Habshi, isto é, o "Partido" ou comunidade política etíope, originalmente escrava, que havia sido trazida para a Índia e seus descendentes. Quando adulto, tornou-se funcionário do Sultão de Bijapur Ibrahim Adil Shah II (1556-1627), sendo promovido a ministro das finanças e comandante do Exército, ganhando para Bijapur territórios que iam até Mysore, sendo posteriormente apontado como regente para o filho do Sultão, Ahmad Shah. No auge de sua autoridade, controlava toda a Corte de Bijapur e liquidava seus oponentes, sendo o Vizir de Muhammad Adil Shah (1601-1656) e expandindo o Bijapur até Karnataka. Após ser derrotado na Batalha de Bhatvadi contra o Sultanato de Ahmadnagar, liderado por outro habshi etíope, Malik Ambar, em 1624. Após a derrota, recebeu o nome de Ikhlas Khan e assumiu como governandor de Golconda, vindo a falecer em 1656. [4]

Ikhlas Khan montado em seu cavalo, pintura mural de meados do século XVI.

Conclusão:

Analisando a vida destes importantes personagens, vemos que as relações e dinâmica mestre-escravo tinham por vezes outras conotações, que divergiam em muito com a realidade escravagista neocolonial que teve as Américas como palco na escravização do mesmo povo a qual pertenciam os governantes já citados, negros africanos. O preconceito que invariavelmente acompanhava a escravidão era, também, signififcativamente menor: podemos ver que não havia – ou pelo menos não havia muito – problema em os súditos de um determinado governante se sujeitarem também, às ordens de seu escravo de confiança, e até mesmo este escravo vir a suplanta-lo, algo impensável no Brasil ou Estados Unidos em seus respectivos apogeus escravagistas.

Referências bibliográficas:

  • [1] "Kāfūr, Abu'l Misk al-Ikhsidi."J. Brill's first Encyclopaedia of Islam 1913-1936. Edited by: M. Th. Houtsma, E. van Donzel. Brill, 1993.
  • [2] Abraham Eraly (2015). The Age of Wrath: A History of the Delhi Sultanate. Penguin Books. p. 178
  • [3] Dokras, Uday. "The Siddhis of India - The Chronicle of an African Diaspora -Two Part Paper PART II".
  • [4]  https://www.blackpast.org/global-african-history/ikhlas-khan-a-k-a-malik-raihan-habshi-1656/
  • Pushkar Sohoni (2016). "Flushing out the Enemy: Revisiting the battle of Bhatavadi". Bulletin of the Deccan College Post-Graduate and Research Institute.